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O Concílio de Calcedônia

O concílio realizado em 451 na Cidade de Calcedônia, às margens do Bósforo, parecia ser o ponto final de um longo processo iniciado pelo menos vinte anos antes. Em 431, o concílio de Éfeso, motivado pincipalmente pela oposição entre as concepções cristológicas de Nestório, patriarca de Constantinopla, e Cirilo, patriarca de Alexandria, foi concluído com a condenação do primeiro. O pano de fundo dessa discussão foi a oposição entre duas escolas teológicas: a antioquena e a alexandrina. A primeira tendia a reforçar a humanidade de Cristo, enquanto a segunda enfatizava sua divindade; no entanto, conforme aponta Alfred Schindler (2012, p.139), talvez as duas visões não fossem totalmente opostas e mutuamente excludentes. Também Philip Jenkins afirma que “perto do ano 400, a maioria dos cristãos concordava que Jesus Cristo era, em certo sentido, divino, e que tinha tanto uma natureza humana (physis, em grego), quanto uma natureza divina. Contudo, essa crença permitiu uma grande variedade de interpretações…” (JENKINS, 2013, p.14). Portanto, a fórmula doutrinal trazida ao fim do concílio de Éfeso, em 433, objetivava trazer a paz entre Antioquia e Alexandria. De acordo com Giuseppe Alberigo, isso de fato ocorreu num primeiro momento. Porém, "com a morte de João de Antioquia (442) e de Cirilo de Alexandria (444), aparece uma nova geração de expoentes eclesiásticos e modifica-se profundamente o clima político. No último decênio ao longo do reinado de Teodósio II, adquire poder o eunuco Crisáfio, afilhado do arquimandrita Êutiques, a figura mais representativa dos círculos monofisistas da capital. Sua ascensão obrigou Pulquéria – irmã do imperador, que tinha contribuído para o acordo de 433 – a deixar a corte e entrar no convento (446-447). Desse modo, a política imperial caminhava cada vez mais na linha dos cirilianos, que agora radicalizam a profissão do monofisismo" (ALBERIGO, 1995, p.86). A figura de Eutiques, arquimandrita em Constantinopla, representava esta postura radical da ênfase na natureza divina de Cristo, a ponto de deixar de lado sua humanidade, o que viria a ser chamado de monofisismo. A doutrina ensinada por Eutiques foi condenada em um sínodo interno convocado pelo patriarca de Constantinopla, Flaviano, em 448. Leão, patriarca em Roma, expressou sua objeção a Eutiques e suas ideias em uma carta que ficou conhecida como Tomo de Leão; nesta, também expunha sua apresentação do conceito ortodoxo da pessoa de Cristo (cf. JENKINS, 2013, p.213). No entanto, Eutiques contava com o apoio do imperador de Constantinopla, Teodósio II, que convocou um segundo concílio em Éfeso determinado a reabilitá-lo. Realizado em 449, ele foi presidido por Dióscoro, patriarca de Alexandria, herdeiro da linha teológica de Cirilo, e favorável a Eutiques. "Resultado previsto, o conselho tomou rapidamente uma decisão, lendo os documentos importantes no caso, mas Dióscoro selecionou as partes que integraram os procedimentos. Os romanos, naturalmente, queriam ler em plenário o Tomo de Leão, considerado o definitivo texto ocidental sobre o assunto, mas o pedido foi negado. Assim, Dióscoro excluiu do concílio a presença simbólica de Roma e da autoridade papal. (...) Nem Flaviano nem Eusébio puderam falar em sua defesa, e os eutiquianos controlaram rigidamente o registro final" (JENKINS, 2013, p.215-216). No auge do exaltado debate, apelou-se para a violência física. Flaviano foi atacado e ferido tão gravemente que veio a falecer três dias depois. Em todo caso, estava garantida a vitória de Eutiques e do monofisismo. Seguiu-se a isso uma investida contra os patriarcas que se lhe opunham. Até mesmo Leão de Roma foi excomungado por Dióscoro. Ao ser informado do ocorrido, Leão rejeitou o concílio e suas decisões; pressionou Teodósio II pela convocação de outro, ao que este se negou. Seguiu-se uma campanha de Dióscoro e Eutiques contra os hierarcas que se lhes opunham, aos quais acusavam de nestorianismo. Nesse momento, parecia garantida a prevalência da doutrina da natureza única de Jesus Cristo. A situação, entretanto, sofreria uma grande virada com a morte de Teodósio II, em 450. Sua irmã Pulquéria se casou com Marciano, e a nova corte era favorável ao entendimento com Roma, o que incluía necessariamente a revisão do concílio de 449, chamado por Leão de “sínodo dos ladrões” (latrocinium). O Tomo foi transmitido aos hierarcas, incluindo o patriarca de Constantinopla, para que o assinassem em concordância. Nestas circunstâncias, Leão passou a hesitar sobre a ideia de realizar um concílio. Diante da solicitação de Marciano para que participasse da assembleia, procurou adiá-lo o quanto pôde. Alegou a inoportunidade de tal movimentação num momento em que o império lidava com invasões dos hunos no Ocidente; além disso, a orientação ortodoxa da nova política imperial parecia torná-lo desnecessário (cf. ALBERIGO, 1995, p.92). Porém, “embora não houvesse lugar para dúvidas quanto à nova coloração religiosa do império, a lógica demandava uma declaração oficial de crença na forma de um novo concílio” (JENKINS, 2013, p.227). Assim, em maio de 451, um decreto conjunto de Marciano, imperador romano do oriente, e Valentiniano III, imperador romano do ocidente, convocou o concílio para setembro do mesmo ano. Inicialmente, pensou-se realizá-lo em Niceia. Foi depois deslocado para Calcedônia, onde estaria mais próximo de Constantinopla, garantindo a assistência do imperador. Segundo Pauline Allen, “o papel de Marciano e Pulquéria em assegurar novos termos para a ortodoxia em Calcedônia foi significativo: não somente eles estiveram presentes na relevante sexta sessão, mas também confiaram a organização dos procedimentos a oficiais imperiais, em vez dos eclesiásticos, assim assegurando um processo ordenado” (ALLEN, 2000, p. 814, tradução nossa). Eram dois os objetivos principais do concílio de Calcedônia: revogar o segundo concílio de Éfeso (449) e rejeitar tanto o nestorianismo quanto o monofisismo. O texto base para as discussões foi o Tomo de Leão, e as conclusões finais visavam uma conciliação entre as visões antioquena e alexandrina. O resultado doutrinário foi "um meio termo entre os diversos modelos cristológicos das tradições alexandrina e antioquena que, pela primeira vez, insere de maneira decisiva na elaboração dogmática a contribuição da Igreja ocidental, através da intervenção do papa Leão. Esse resultado está numa definição que não é concebida como profissão de fé distinta ou mais completa do que o símbolo niceno-constantinopolitano, mas sim como sua fiel interpretação e esclarecimento. Ele se limita, de fato – como declara o amplo preâmbulo –, a expor a doutrina cristológica correta, objeto das discussões daquele período, sem pretender reformular a fé da Igreja no seu conjunto" (ALBERIGO, 1995, p.100). No entanto, o retorno à ênfase na humanidade de Cristo levou uma parcela das autoridades eclesiásticas a rejeitar a fórmula final, considerando-a expressamente nestoriana; e esta será a acusação feita aos partidários de Calcedônia nas polêmicas que sucederam ao concílio, não apenas por monofisitas. Deste modo, o que parecia ser um ponto final no debate sobre as naturezas da pessoa de Cristo foi novamente apenas uma vírgula. Restaram ainda ressentimentos e discordâncias, que causaram grande divisão entre as igrejas do Oriente do império (cf. ALLEN, 2000, p.814).
(Extraído de: Amaral, Roberta Valle do. A revolta do Trisagion no contexto dos conflitos dogmáticos cristológicos antes e depois de Calcedônia. Monografia de especialização. Faculdade São Bento, 2017)

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